Já se passaram dois meses desde que participei do curso "Arte Secreta do Ator", em Brasília - DF. Esse curso foi ministrado por ninguém menos que Eugênio Barba e Julia Varley, diretor e atriz do Odin Teatret (Dinamarca), grupo de teatro que trabalha com uma forte pesquisa sobre o trabalho do ator, principalmente pela forte influencia que Grotowski teve no trabalho do Barba.
Os grandes MESTRES do teatro já não estão mais conosco, restando poucas referências fortes para o teatro contemporâneo, o nosso teatro de hoje, e ter a oportunidade de trabalhar cara-a-cara com um deles foi uma das maiores experiências da minha vida.
São muitas memórias, lembranças, sensações, imagens e anotações sobre aqueles 07 profundos dias em que, pela primeira vez na minha vida, eu estava por minha conta. Sempre trabalhei com grupos, amigos, colegas - tudo o que sempre fiz foi acompanhado de outras pessoas - mas não desta vez. Ali eu estava sozinho, pegando avião sozinho, parando numa cidade que eu não conhecia nada nem ninguém e me entregando de coração para as mais intensas descobertas.
Eu poderia descrever quase que todos os momentos do curso - como a chegada no local combinado e os participantes se conhecendo pela primeira vez (não nos apresentávamos por nome, mas sim pela cidade de origem de cada um), havia aquela sensação de início de Big Brother: quem são essas pessoas? onde elas me levarão? o que acontecerá lá?, a descoberta do Solar Guadalupe - um capítulo a parte, de beleza e simplicidade indescritíveis, dos primeiros momentos na presença do Eugênio e da Julia, do início de amizades de começavam a se desenvolver entre os participantes... Vou pular todas essas lembranças e ir direto para o conhecimento, a experiência, o ensino.
Deixo claro, no entanto, que tudo é a minha perspectiva do curso - em momento algum quero dizer aqui verdades. Deixo claro que elas não existem. O que escreverei aqui são anotações e impressões que o Márcio Ramos, em dezembro de 2011 teve. Só.
Corpo. Voz. Energia. Natureza. Espiritualidade. Entendimento. Análise. Contato.
"Saber, fazendo!" - no que diz respeito do excesso de cautela em só estudar, estudar, estudar teatro (ter títulos e mais títulos acadêmicos), mas nunca transformar esses conhecimentos em teatro, de fato. Fazer teatro permite o desenvolvimento do nosso conhecimento.
A arte do ator é a arte de agir.
O princípal papel do ator é ser como uma árvore, que cresce para cima (o que os olhos externos percebem), mas algo também se esconde e cresce para baixo (aqui entra a técnica, a vivência, a experiência, o conhecimento).
O ator deve estar completamente preparado para representar a vida - POR COMPLETO.
Seja sua linguagem corporal, seu tipo de voz (sua sonoridade) e suas palavras (seus significados).
Ter muito certo que tipo de energia se quer conquistar ou criar com o público - e NUNCA deixar de trabalhar essa energia. E não ser especializado num certo tipo de convenção teatral - EXPERIMENTAR!
"Aprender a reaprender!", aprender a desaprender o que lhe foi dito, teatro é uma arte efêmera, em constante transformação - assim como suas bases, teorias, idéias, técnicas... Ator é lugar de acumular conhecimento. Ator tem que aprender tudo. Se não sabe algo - eliminar o bloqueio.
"Os cliches da vida são pedacinhos diferentes que remontamos de formas diversas" (achei tão lindo isso!)
"Ir contra a evolução da sociedade" - somos aristocratas do corpo.
"O ser humano pode fazer tudo sozinho. Menos teatro." Vejam nas artes, por exemplo: na música, artes plásticas, cinema, literatura - todas essas expressões artísticas continuam existindo, mesmo que não tenha ninguém vendo(absorvendo) elas. Já o teatro, se não tiver platéia, não é teatro (é um ensaio...hehehe). Precisamos do outro, seja para construir ou para reproduzir. Aliás, fazemos para o outro.
No teatro, numa apresentação, temos que fascinar o espectador. E gratificar ele, para que ele se sinta inteligênte. Esconder algumas peças, para apresentá-las de formas diferentes.
Não confundir movimento e ação. A arte do ator é justamente transformar um movimento em ação. Movimento é correr, simplismente. A ação seria fugir ou perseguir algo.
No trabalho com partitura física, constantemente temos movimentos que se transformam em ação (automaticamente pela mente do ator), o diretor/professor transformará de acordo com sua visão/necessidade - e aquela imagem/sensação que tinhamos com determinado movimento + partitura = ação será modificada. Mas cabe ao ator, sempre relembrar que intenção havia atrás de cada movimento modificado, para assim sempre transformá-lo em ação significante. Cuidar, pois constantemente há um comportamento físico que não corresponde as ações.
"O melhor ator sabe surpreender o público logo no início", palavras de Eugênio Barba (lembrete: NÃO SAIR ASSUSTANDO O PÚBLICO ASSIM QUE ENTRAR EM CENA! rs)
A técnica, a prática, o excercício diário do ator serve para construirmos a imagem do cisne; acima da água deslisa na água, calmo (aparenta total controle de sua função); abaixo da águaele pedala, trabalha (a consciencia de cada atitude, a inteligência em ação).
O espaço é sólido. Se eu crio ação - você reage.
O corpo é o melhor condutor de energia.
Dilatar, nada mais é do que FAZER APARECER.
Ator deve colocar o corpo em forma, para informar o público.
O ATOR é um emissário da vida - Manifestar, de forma manipulada.
O DIRETOR controla e descobre caminhos, para manipular o público.
O diretor é esquizofrenico:
-Tem que ver tudo de forma técnica.
-Tem ver tudo como se fosse o primeiro espectador.
"FAZ-SE UM ESPETÁCULO PARA O PÚBLICO SE SENTIR UM SOL." (com essa citação eu poderia parar de escrever, tem tanta paixão nessa frase.)
O público pode não entender, mas tem que sentir o espetáculo.
"Quando existe uma cena que eu não gosto, que não funciona, deixo ela lá até encontrar uma solução."
Ao mesmo tempo que cortar cenas é o que permite ser eficaz.
Se algo dá problema - elimine.
"O silêncio ou a música são mais fortes que a palavra."
Realizamos trabalhos de exaustão fisica, com partituras de movimentos, para termos a "possibilidade de conquista sobre a mente e o físico".
Esconder a ação: empurrar/tirar, introversão/extreversão.
A ação deve se desenvolver numa dinânima ternário e não binária - três elementos e nao dois.
Dois elementos: início e fim / desejo e conquista.
Com três elementos, incluimos a oposição, a dúvida, o questionamento do desenvolvimento da ação.
"O ARTISTA não respeita regras da moral da vida. Respeita regras de sua profissão."
Esconder as ações pode ser considerado meio cínico. Mas é uma forma de conhecer e manter sua energia.
Não se exibir. Criar e alimentar a sensibilidade.
Ações são como rios - nem sempre correm acima, as vezes correm abaixo da terra.
Num trabalho físico, sempre se trabalham as ações e o ritmo. Depois se trabalha o contexto, para então trabalhar a voz.
Evitar o uso do rosto, na construção de ações. Se a ação deve ser pesada, retirar qualquer sinal de peso do rosto para ter certeza que é o corpo quem está sentindo, e não a habilidade de interpretação do ator, pois o ator pode se enganar, deixando de realmente sentir sua ação.
Em determinado momento, Eugênio ensaiava com a Julia sua mais recente peça, com o Mr. Peanut (personagem característico que a Julia trabalha em várias peças). Eugênio queria refazer uma cena, e tinha a imagem de uma tempestade em sua mente, queria repassar essa imagem para Julia. Como? Ele começa a propor várias ações para ela desenvolver dentro do contexto da cena. Pede para ela representar cavalos enfurecidos, depois um fantasma violentando a mulher ou dois gladiadores lutando. Do conjunto dessas ações que se formaram, ele reconstitui a imagem da tempestade que ele queria. E ela, mesmo as ações ficando "picotadas", sempre relembrará de onde elas vieram, para não perder sua essencia.
Erotismo é imaginação, e não físico.
Por fim eles nos falam que as partituras físicas são só um caminho. Mas esse caminho tem que existir.
*Muitas destas citações, informações, anotações, estão recheadas de imagens e significados pra mim - que estava lá. Não sei da funcionalidade delas sozinhas, sem os bastidores. Mas vou imaginar que essas falas que eu anotei aqui são nossas partituras físicas - agora cabe a cada um escolher o que lhe serve, para aquilo que vocês querem contar.
Deixo registrado aqui, também, como é incrível ver que lendas vivas do teatro são tão acessiveis (ou muitas vezes mais acessiveis) do que os que vivem do nosso lado. Eugênio e Julia não tinham medo algum de revelar todos seus conhecimentos, todas suas experiências - um dos atos mais humildes que já vi em minha vida.
No final do curso, ao pedir para a Julia autografar seu livro, que eu havia comprado, recebi essas lindas palavras:
"QUERIDO MÁRCIO
SALTANDO
PULANDO
COM OLHOS ABERTOS PARA CONQUISTAR O MUNDO
COM VULNERABILIDADE.
UM ABRAÇO
JULIA"
Receber essas palavras, foi como um combustível para me abastecer por muito tempo.
Fico extremamente grato e honrado por participar de algo tão bonito quanto a ARTE SECRETA DO ATOR.
Obrigado Eugênio Barba.
Obrigado Julia Varley.
Obrigado Luciana Martuchelli.
Obrigado aos amigos e colegas de profissão que ali conheci.