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Diário online do ator Márcio Ramos - relatos, pensamentos, agenda, críticas...

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Críticas: O FAUNO

Nosso primeiro texto / crítica sobre a peça O FAUNO. Foi escrita pelo jornalista Marcelo Aramis do "O Caxiense Revista". Para ler no site clique aqui!

Na antessala do inferno, me agrada atuar

por | October 31, 2011 às 12:52 pm


É doloroso vê-lo curvado, equilibrado sobre os metatarsos, ombros deslocados, pulsos dobrados sobre as costas, pescoço torcido. A coreografia desgraçada de um homem bicho realmente dói. O ator não mascara o desconforto, mas age com a resignação de quem nasceu assim, torto. Em O Fauno, que teve pré-estreia na sexta (28), no espaço do Teatro do Encontro, Márcio Ramos apresenta o resultado de um ano de trabalho dedicado e longas sessões de exercícios que deram a ele não somente um convincente corpo de fauno, mas um dos corpos mais disponíveis da cena local.

“Sejam bem-vindos, se é que é possível dizer “bem-vindos aqui”, avisa o sarcástico Fauno, meio homem, meio cabra: inteiro Márcio. As moiras – “as velhas” – tecem, enrolam e cortam o fio da vida. Sob um emaranhado de frágeis fios de vida, a plateia é convidada a sentar-se. Estamos na antessala do reino subterrâneo de Hades, é meia-noite e não há esperanças de salvação. O inferno, o limbo ou o paraíso? Ninguém ali parecia merecer o terceiro. No entanto, ficamos à vontade, penduramos nossos fios de vida cheios de nós e aguardamos o julgamento. Primeiro o do Fauno, porque sarcásticos também somos.

O Fauno conta velhas histórias, debocha dos deuses e da mitologia sagrada, chupa os fios e revela os momentos mais sórdidos das vidas ordinárias que estão ali. Consciente das suas escolhas e não-escolhas, condenado antes mesmo do julgamento, o fauno ridiculariza o próprio infortúnio. Teme o inferno, mas não o julgamento dos novatos na sala de Hades. Sabe que ali há outros condenados ao mesmo destino, ainda que tenham percorrido caminhos diferentes. É ai que está a relação íntima entre o fauno e a plateia, acomodada ao mesmo nível do personagem. Além do desempenho corporal de Márcio, a temível “interação com o público”, profunda e opcional, é o que mais me surpreende no espetáculo.

Ninguém é exposto contra a vontade, mas todos, inevitavelmente, compõem o jogo cênico. É plástica a participação da plateia, que se faz personagem e cenário para a história do fauno. Convidados para a última ceia, os espectadores comungam da festa (sim, uma festa, ainda que desesperadora) da despedida do fauno. Comem, bebem, conversam. Sentei em três lugares durante a peça, porque eu quis. É escuro e a sala foi transformada em um labirinto de fios e nós, mais um acerto de Ana Lia Branchi. A teia e a penumbra fazem com que as pessoas se arrastem lentamente, ou caminhem curvadas como o fauno, para ocupar novos espaços. Sem ensaio, o público dança naturalmente a coreografia dos mortos famintos. Quem decide permanecer onde está não tem espetáculo ou atuação menores. Figura como a classe dos que tem mais chance do paraíso e pode observar de longe o animalesco jantar dos condenados.

O texto de Ana Fuchs, que dirige a peça e tem Tefa Polidoro como assistente, foi escrito em 2005 e transformado para a atuação de Márcio. A ficha técnica de grandes nomes tem ainda Cristina Lisot, que construiu um figurino capaz de dar mobilidade ao ator e destacar o as anomalias do fauno; trilha hipnótica de Fran Duarte e Tita Sachet e iluminação de Juarez Barazetti.

Em um debate após a peça, Márcio conta que o espetáculo pode se transformar a cada apresentação. O que deve mudar é a atuação da plateia, que não ensaia, mas é convidada a quebrar o monólogo. Uns mais medrosos, alguns mais piedosos, muitos adequadamente debochados. O riso corrosivo e os olhos arregalados de medo do fauno, repugnante, mas digno de piedade, devem permanecer. (por Marcelo Aramis, O Caxiense Revista)

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